"A menina que cantava para as flores", suspense baiano, instigante e imperdível






A criatividade de Sílvio Pereira em seu novo livro se expressa de diferentes maneiras e transforma "A menina que cantava para as flores", em um romance instigante. Parece que tudo vai se movimentar em torno de uma menina que traduzia em canção tudo que experimentava quando entre as flores. Este hábito e habilidade  poderiam fazer ela superar momentos opressores, um abuso, a perda de alguém querido, a solidão, a mudança de cidade etc, mas não.


Tudo que se pode imaginar com o título se desfaz nas primeiras páginas lidas, o autor nos transporta para um mundo sobrenatural. Se você está pensando em algo como o  Labirinto do Fauno, não, ele está mais para Poltergeist mesmo. Surgem como delírios ou sonhos acordados, as primeiras assombrações percebidas pela professora de francês Marta, na chacará em que vive com suas três filhas Gorete, Cecília e Catarina e seu esposo Suzano Alcântara, em Salvador. Ele, filho de Alagoinhas, cidade das águas, da cerveja na Bahia; ela, cearense. Neste momento, ela ouve e vê a filha de seis anos cantando para as flores em francês.


Antes, Marta assiste, com sua empregada Cris, Ana Cristina, a uma reportagem sobre a queda de uma avião na fronteira entre a França e a Espanha, nos Montes Pirineus. Aí já começam as alusões à cidade de Alagoinhas, terra natal do autor, que estará bem retratada também com o personagem Miguel Velho, fundamental para desvendar o mistério. Logo no surgimento do primeiro fenômeno espiritual, nota-se o talento de Sílvio Pereira para transportar com palavras o leitor ao mundo das percepções e sentimentos. 

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Há passagens que parecem indicar se tratar de um romance infanto juvenil ou de uma daquelas produções que ficam entre o drama e o humor. O autor não cai nesta armadilha, procura seguir a linha deixada pelo mestre Allan Poe, não os comparando, claro. A narrativa segue em uma tensão constante e crescente, usa na medida certa os alívios cômicos.


Aliás, este é um dos defeitos dos críticos, querem sempre comparar bons escritores com os gênios, terminam classificando como amadores todos aqueles que não chegam aos pés dos monstros sagrados. Silvio Pereira faz boa literatura, só não é um gênio. Ele tem algo a mais para contribuir com as letras algoinhenses, não tem pressa em narrar e deixa sua imaginação fluir sem cair na mera fantasia ou na fantasia gratuita. Seus personagens são de carne e osso e convincentes.


Mas, retomando a estória, Marta, em uma espécie de transe, percebe a filha cantando para flores. Esse ponto é terrível. O autor, para jogar o sublime ao chão, usa a palavra "flores" como um gatilho para nos remeter ao mundo dos mortos. Ele segue o roteiro dos filmes de suspense, mas, dentro da fórmula, coloca o diferente e prepara um jogo intrigante  de combinações entre os fatos. O Episódio do avião é esquecido. Coisas estranhas começam a acontecer na casa. Barulho de animais à noite, os quais não têm hábitos noturnos. Uma aparição no espelho que só a empregada Cris vê constatemente...  a menina Catarina, tão pequena e inocente, cantando músicas de adulto, desconhecidas, com mensagens perturbadoras.


Suzano é incrédulo e pensa que a mulher está com problemas mentais, faz parte do roteiro clássico, mas como professor de música, tem sensibilidade suficente para perceber as transformações que vão ocorrendo com todos a sua volta. Gorete, a filha mais velha, tem um namorado francês, Jules Liam, que não dá notícia há três meses. De repente liga falando coisas breves, mas inquietantes. 


A filha do meio, Cecília, é a personagem mais interessante pelo seu modo de falar. Ai que vem  toda a inventividade de Pereira, ele também tem uma capacidade impressionante de passar para a escrita os maneirismos culturais do falar baiano e do falar adolescente (o autor tem filhas adolescentes, existe fonte de inspiração). Este é o ponto forte da textualidade, não existe um narrador praticamente. A história é conduzida toda ela por diálogos. O narrador serve apenas para introduzi-los. O livro já foi escrito como que para novela, peça teatral ou filme. E Silvio é primoroso em diálogos, algo que é muito difícil para vários autores, que se sentem mais confortáveis, geralmente, com a parte narrativa.


Pois, existe um capítulo hilário com Cecília contando que, no centro de Alagoinhas, tomou uma carreira de um doido e de uma multidão que a confundiu com uma ladra. Pode-se destacar também um outro em que Suzano explica as três teorias da mentira, talvez uma influência de Machado de Assis, quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas ( e em Quincas Borba), a personagem principal desenvolve uma teoria inteira, chamada por ela de humanitismo. Ambos capítulos estão entrelaçados ao mistério que Silvio tão bem faz consumir o leitor. 


Em vez de caça-fantasmas e padre exorcista, surge o pai de Cris. o curandeiro Miguel Velho, alusão a um bairro de Alagoinhas, para fazer a limpeza da casa. Novamente por meio do diálogo, o autor consegue dar corpo à personagem e a faz convincente, dotada de conhecimentos espirituais e ocultistas bem articulados e lógicos. O Velho tem uma peculiaridade, fala palavras erradas e rebuscadas ao mesmo tempo, todo mundo conhece alguém assim. 


Bom, falar mais seria dar spoiler. O que se tem a dizer em acréscimo é que o livro prende do início ao fim, é para ler de uma sentada. Para não dizer que não falei das flores, um porém. "A menina que cantava para as flores" pode ter um sucesso maior do que se imagina, é aquela redação que merece um 10, mas o professor dá 9,9. Faltou provavelmente um copydesk que fosse tão bom a ponto de ser impiedoso para alcançar a nota máxima, um ponto que pode ser visto em uma próxima edição. Mas sem sombra de dúvida é um grande trabalho e uma estória arrepiante e imperdível, escrita com bom timing e sensibilidade.



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