Lacração na arte não ajuda pauta identitária
A arte não pode ser convertida em um panfleto político. Vemos, no entanto, esses limites serem transpostos pela Netflix e pela Globo em suas produções ficcionais fortemente. Fazem isso em favor das questões identitárias, relacionadas às causas feministas, antirracistas e em favor dos LGBTQIA+. Acham talvez, por não se tratar de política ideológica-partidária, que não se esteja fazendo panfletarismo, estão, e nesse caso tem sido chamado a isso de "lacração". Não sou um conservador, não façam confusão, sou a favor do feminismo, sou contra a homofobia e sou preto. Mas acho que existe o discurso lacrador e a lacração é o velho é bom panfletarismo nas artes, que, como sempre se soube, deve ser evitado. A lacração não ajuda as políticas identitárias, ajuda os políticos que se apropriam das pautas identitárias, principalmente os da esquerda derrotada em 2016 nos EUA e em 2018 no Brasil e que vinha perdendo espaço na Europa. A lacração é boa para a implantação do capitalismo de estado. A lacração parece que ajuda muito a mulher e o gay nascidos na classe média e ajudará a formar mais rapidamente uma classe média preta. Mas para a massa empobrecida, onde existem mulheres, gays e maioria preta, a lacratividade não vai fazer grande diferença. Tudo se resume a uma luta pelos cargos de decisão - o campo de confronto por excelência da classe média.
Estava assistindo, reassistindo, "O Regresso" com Leonardo DiCáprio, o filme em que seu personagem Hugh Glass parte para o oeste americano disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso, fica seriamente ferido e é abandonado por seus companheiros em pleno inverno com os campos e montanhas cobertos de neve. Esse filme não é panfletário, ele trata a discriminação aos índios sem lhes exacerbar as qualidades morais nem diminuir as dos brancos. O filme mostra brancos bons e maus, que se acham superiores aos índios e outros que não, mesmo que no contexto geral os brancos pensem de forma discriminatória. O filme demonstra que culturalmente os índios possuem valores mais humanistas e comunitários, o que é uma verdade, mas não mostra a cultura branca desprovida desses valores. O personagem de DiCáprio, que se casou com uma índia e teve um filho com ela, não se torna um indígena de pele branca, embora fique nítido, mas sutil, que ele adquire valores dos explorados, mas não de todo e de forma complementar a sua cultura.
Os brancos não exploram os povos nativos e a natureza porque são moralmente inferiores, mas porque são conduzidos a isso pelo processo histórico e cultural. Os nativos não assumem a postura vitimista, lutam ferrenhamente para se opor à dominação, manter seu modo de vida e seu território. Em nenhum momento tem uma fala comparando as duas culturas ou comentário que remeta a uma interpretação dessa natureza, a esse tipo de simplismo. Essa é uma forma de diferenciar o filme de arte do panfletário. O filme de arte fala com ações, a fala, propriamente dita, apenas entra como componente nessa materialidade. Philadelphia, com Tom Hanks e Denzel Washington, que aborda a questão da AIDS, é assim e também Bohemia Rhapsody, sobre a vida de Freddie Mercury. Esses filmes mostram que é desnecessário o panfletarismo e sua versão atual, a lacração.
No filme "A Travessia" (The Walk - 2015), o diretor Robert Zemeckis ( o mesmo de Forest Gump e De Volta para o Futuro), representa a relação do homem com a mulher de maneira maravilhosa, o homem sendo homem sem ofuscar a mulher e a mulher sendo mulher, assumindo sem peso ou angústia um papel coadjuvante no drama (impossível em um filme lacrativo), mas de extrema importância na vida do protagonista, Philippe Petit, um equilibrista francês que atravessou o espaço entre as torres gêmeas em 1974 por um cabo de aço. Lá em cima, realizando sua arte, seus movimentos tinham muita feminilidade, o homem e a mulher se encontram na arte plenamente. É um filme que mostra como acabar com machismo sem gerar antagonismo. Vejam que "O Regresso" e "A Travessia" são produções de 2015 e essa nova tendência panfletária começou a partir de 2017.
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