Marighella: quando a esquerda era decente e a mais-valia
Neste documentário exibido pela Netflix, a diretora Isa Grinspum Ferraz retrata a vida de seu tio, o ativista Carlos Marighella, durante os anos 60, época da ditadura militar. O filme é maravilhoso, entrecortado por trechos de uma prova de física respondida em forma de poema pelo revolucionário ainda adolescente no Colégio Central, que tinha um alto nível de ensino, formando boa parte da intelectualidade baiana. Esse não é o filme de Wagner Moura, que foi criticado por colocar Seo Jorge para interpretar o guerrilheiro. Bobagem, o cara era mulato, com fenótipo negro. O pai era italiano e a mãe, negra. Era moreno, eu sou moreno, e acho que moreno é preto, principalmente se for pobre. Digo isso, mas discordo da apropriação da esquerda dos movimentos identitários, já escrevi muito sobre isso aqui.
A diretora contrasta a visão de menina do tio, Marighella, com sua figura pública e histórica de grande militante e liderança da esquerda brasileira, sua atuação como deputado Federal, depois como presidente do PCB, depois os seus tempos de guerrilha urbana, com a Aliança Renovadora Nacional. Insere, retrata seu lado pessoal, a personalidade amorosa, alegre e gentil daquele homem. Seus dotes artísticos. Uma figura humana exemplar. Lembrou-me muito Humberto Primo, nosso referencial como capoeirista e como pensador de esquerda. Como ele, conheci vários - homens decentes como não há mais.
Quando ser de esquerda era sinal de humanidade, justiça e dignidade frente a uma direita perversa e corrupta. Não vou dizer que hoje houve uma inversção, apenas que a esquerda foi infestada de corruptos e canallhas e que a direita criou uma ala classe média ascendente da classe D, raladora e empreendedora, muitos ligados a religiões cristãs, que resgataram a bandeira da moralidade pública, jogada na lata do lixo da história por uma esquerda agora arrogante, pedante e autoritária - intérpretes mediocres da teoria de nietzsche e que usam nietzsche como escudo para as suas picaretagens.
Assisitindo ao documentário, eu, que fui simpatizante de esquerda por mais de 20 anos, compreendi algumas coisas com mais clareza. Na época de Marighella, anos 50 e 60, e até minha época, anos 80 e 90, havia uma relação de fato entre acúmulo do capital e exploração do proletariado, a tese da mais-valia de Marx fazia sentido. Era justa a reivindicação da divisão igualitária da riqueza. Mesmo assim já havia uns poréns. Isso considerando nosso capitalismo primário.
Para o capitalismo americano e europeu, já havia uma complexidade que envolvia a inteligência empreeendedora e a determinação dos empresários que influiam no acúmulo de capital assim como a inteligência tecnológica. O cálculo da mais-valia já não contemplava aquela realidade complexa. Tanto era justificável o pensamento de Marighella quanto de seu algoz, os EUA que promoveram as ditaduras nas américas.
Era difícil para o esquerdista baiano fazer uma releitura da mais-valia como até hoje ninguém teve coragem, visão ou condição para fazê-la. Existia também uma ingenuidade nos guerrilheiros daquela época,eram levados a pegar em armas com base nos movimentos exitosos de Cuba e da Coréia e claro embalados pelos mitos portentosos na revolução russa de 1917. Não se tinha nenhuma leitura do contexto histórico e de que os americanos já haviam reunido informações suficientes sobre as estratégias das guerrilhas.
Foram enfrentar um adversário-inimigo poderoso com meios escassos e só com boa vontade. A estratégia não era ruim, até Marighella escreveu o Manual do Guerrilheiro para unificar as ações, começar na cidade e levar as iniciativas para o campo. A Guerrilha do Araguaia é um capítulo também emblemático desse confronto. Os golpistas, agentes da ditadura, contavam com sofisticado esquema de espionagem-informação. Mas a grande diferença foi a tortura. A esquerda jamais imaginou que se desceria tão baixo. À guerrilha não deu-se tempo de chegar à zona rural e se chegasse, as forças armadas estavam mobilizadas para contratacar com todo o peso. Não sabiam, mas travaram um combate suicida.
Sei que é injusto fazer uma avaliação desta como se os revolucionários fossem meros inconsequentes ou pessoas estúpidas. Não, eram pessoas sérias e como disse muito dignas. Mas não sabiam que não dispunham de informações suficientes do inimigo.
Voltando à tese da mais-valia de Marx, ela tinha já em si um valor parcial. Na minha opinião, não é só força de trabalho que gera o acúmulo do capital. Em atividades primárias como agricultura e mineração, isso é quase uma verdade absoluta. Mas com o avanço tecnológico, tem que ser inserido o componente da inteligência e com a complexidade dos mercados, a inteligência gerencial e com os meios de comunicação de massa, o talento.
Mas Marx já estava errado quando não levou em conta a inteligência e a coragem militar e o espírito de aventura e o talento dos navegadores, além da inteligência burocrática e a inteligência bancária financeira incipiente de tempos passados. A tese da mais-valia está errada e como sempre, as teorias equivocadas levaram a milhões de mortes. Por isso o trabalho do intelectual tem que ser tratado com o máximo de seriedade e nunca ser tomado de forma dogmática. A crítica deve ser estimulada sempre, nenhuma teoria pode ter o status de verdade.
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