Cultura brasileira ganha o Oscar de Filme Internacional




"Ainda estou aqui" não é um filme woke, nem ganhou o Oscar de Filme Internacional porque contentou um juri woke. Claro que este pano de fundo conta, mas não foi, de forma alguma, determinante. Assiti ao filme, enquanto rolava a cerimônia do prêmio. O filme brasileiro levou a estatueta porque é uma produção  excepcional, fora da curva realmente. A interpretação de Fernanda Torres não é monocórdia como disse o crítico do Le Monde, é extraordinária na sua maneira de corporificar um sofrimento, tudo na composição e no agir da personagem é coerente, consistente e impactante. 


Eunice é uma personagem contida, e existem pessoas contidas, pronto. Torres vive esta personagem com maestria. A dor da perda do marido amado, Rubens Paiva, não se expressa em lágrimas, tudo é muscular e no tonos facial, na respiração curta, na voz quase que calada, embargada, numa sensação de quase desmaio, no olhar perdido e cinza. O Oscar do filme é o Oscar da atriz, Fernanda Torres/Eunice é o filme.


Por isto o drama, que realmente não se  tem altos e baixos, picos dramáticos, se delineia em sutis expressões faciais, no enquadramento, no timimg, na trilha sonora. A dor dilacerante aprisionada no corpo para seguir adiante, a forma como ela consome a vitalidade e esperança, tudo isto foi o resultado de um esforço para se manter inteira para tocar sua família com perspectiva de viver com a maior redução de danos possível. Como a tortura e a ditadura destruíram pessoas está expresso nesse sofrer manifesto em pequenos detalhes.


Walter Salles vai se consolidando em histórias ( e estória) com escassez dramática em termos de acontecimentos marcantes ou catarses. Desde Diários de Motocicleta, que conta parte da juventude de Che Guevara, a Central do Brasil, ele escolhe as cenas e extrai tudo de cada uma delas, tira água de pedra. Usa de recursos para dar dinamicidade, tirando a história de sua monotonia inerente - como a mudança de angulação e como a metalinguagem. 


A primeira parte de Ainda estou aqui quer apenas dizer que há uma família feliz e quando se mostra pessoas felizes por muito tempo nas telas, o espectador espera a virada, algo negativo. No caso de um filme sobre uma ditadura, isto já está na sinopse que todos trazem para a sala de cinema. - Vamos assistir a tal filme? - É sobre o quê? - Sobre os horrores da ditadura militar. Todos esperam pelo início dos horrores, isto cria tensão permeando a felicidade.


Pronto, você já está preparado para esperar pelo pior depois de uma longa sequência de episódios de felizes. Claro que nenhuma família é tão feliz assim, mas o exagero tem que ser visto como recurso para aumentar o choque de realidade com a interrupção pelo fato brutalmente nefasto. Interessante é como Salles retira Rubens Paiva da cênica, desde que ele entra no carro para ir para os porões da tortura do regime militar. A ausência,  o vazio deixado, é passado para o espectador. Ele fica com isto na boca do estômago, e isto é genial e é um exemplo de que esse é um filme para Oscar. O sofrimento catatônico de Eunice torna mais profundo este vácuo, reforçado por pontuais aparições em foto do desaparecido.


Passados muitos anos, quando se consegue o atestado de óbito de Rubens Paiva, Marcelo, o filho que escreveu o livro que dá base ao filme, pergunta para a irmã: quando foi que ele morreu para ela. Ela responde que foi quando a família mudou para São Paulo. Salles também enfatiza a forma de Eunice lidar com os filhos, diante da dor de perder o pai. Os diálogos são rápidos, com informações básicas, de forma a não dar vazão para a dor sentida, como que conduzindo todos para continuidade da vida que vai seguir paralela ao sofrimento. Isto torna a morte de Rubens Paiva algo muito mais monstruoso e desumano.


O fato de se ter que criar uma força para seguir com a vida, quando tudo aponta para a depressão, a revolta destruirdora, a descrença na vida e na humanidade.


Por isto o filme não é woke, é uma grande expressão de arte. Por infelicidade, foi realizado neste momento de polarização patética. Na campanha, houve este apelo ao woke, flertou-se com isto. Mas o filme precisa ser afastado disto. Ele é a prova de que no Brasil se faz uma grande arte, que temos artistas de alto nível e que temos uma cultura que proporciona e fortalece isto - resta o desafio de realizar políticas públicas que a preserve e a efetive com sua democratização. Fica a mensagem de que qualquer ditadura de esquerda ou de direita é monstruosa. Ainda estou aqui nos remete à empatia com suas vítimas. 


Por isto temos que ser intransigentes com a democracia e não tolerar nenhum resquício de autoritarismo. Esta genuína obra de arte é um convite a saírmos da polarização que nos destrói. Só a cultura pode fazer este milagre e ela fez nesse grande projeto realizado e em realização, pois que se continua perpetuamente, isto é arte. 

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